domingo, 31 de julho de 2011

2

Chove forte na marquise e gotas respigam janela adentro. Aos poucos o dia amanhece. Lúcia, há muito acordada, espera. Confusão de estampas na boca da janela: um vestido de mangas compridas, uma cortina florida, um pano que encobre os rasgos do sofá. A luz emana leve do abajur ao canto da sala, de modo que há apenas uma estampa formada das outras tantas, naquele quase escuro ou quase claro. Pode um esperar carecer de esperança? O rádio soa ao fundo. Tudo é estático naquela casa. Há apenas o chiado ondulado do rádio rompendo o silêncio e a fumaça que faz cinema do bico da cafeteira italiana.  A noite formada na fumaça. O homem, o silêncio, o sapato, o estalar agudo dos passos, a porta. Depois o letreiro, o escuro, a calçada, os passos, a neblina, a buzina. Lúcia interrompe o fogão antes de qualquer notícia. Na caneca, o café espera o açúcar.

domingo, 17 de julho de 2011

1

Ele vai no escuro da calçada. Alguns olhos talvez adivinhem o recorte da sua figura pouco lúcida. Os passos duros e curtos parecem trazê-lo do início do mundo. É como se caminhasse desde antes que existisse chão, desde antes que existisse ser que pisasse qualquer chão. Quisera cobrir os anos que lhe restam nestas passadas, gastá-los como se gastam o fôlego e a sola dos sapatos. Palmilhando. Que suas próprias pernas lhe entreguem a morte; depois, levem-no para além. Andar para sempre? Andar para nunca. Seu destino é o não. Ele vai. E enquanto vai, sua vista mastiga o meio da rua. O asfalto é amplo, profundo, negro. Como um rio. A calçada é estreita; margem rasa. Sentindo-se asfixiado, ele começa a tornar lentamente: o leito da rua o chama. Já está no meio-fio. Os automóveis ventam. Ele fecha os olhos e abre os braços, como se fosse precipitar-se na correnteza que o arrastará para o esquecimento. O vento aumenta.